Novo normal

Uma das situações que vivi quando trabalhei como repórter na editoria Grande Rio, no jornal O Globo, nos idos de 1989, tem ‘frequentado’ constantemente os meus pensamentos nestes últimos dias. Estávamos eu, um fotógrafo e um motorista do jornal num carro Gol branco, sem identificação externa, entrando numa das favelas da zona norte do Rio. Fomos fazer uma matéria sobre a visita de vereadores à comunidade, para inauguração de uma pequena obra, que não me recordo bem qual era. Assim que entramos na favela o motorista colocou, no console, uma placa com o nome do Jornal. Mas a placa não foi o suficiente, claro. Em poucos minutos fomos cercados por três ou quatro homens armados de escopetas.

“Quem são vocês, o que querem aqui, vão aonde?” Depois de tudo esclarecido, no entanto, não fomos liberados para continuar nossa busca sozinhos. Sem saber o local correto da inauguração, nossos ‘recepcionistas’ nos levavam pelas estreitas ruas da favela e perguntavam aos moradores se sabiam de algo. No meio da favela havia uma espécie de praça, um largo, com casas ao redor e crianças brincando, moradoras lavando suas roupas em tanques ao lado das casas e mais homens armados.

Essa imagem talvez não surpreenda mais ninguém hoje em dia, mas me chocou tremendamente. Sempre tive pavor de armas, mas o que realmente me deixou abismada foi constatar, ao vivo e a cores, que o que eu via era o “normal” para aqueles moradores. Muitos deles nasceram ali e cresceram tendo que aceitar esta dura realidade, num mundo, àquela época, muito diferente do que tínhamos fora das favelas. Infelizmente, eles tinham que se adaptar – na verdade, têm até hoje, apesar de algumas mudanças – por não terem como morar em outro local. Era, como disse, normal. Assim continuavam a vida.

Fazendo um paralelo com a pandemia que estamos vivendo, acho que milhares de pessoas ainda não perceberam que, diferentemente das pessoas que moram nas favelas, nós temos sim como enfrentar a Covid19. Não consigo acreditar que seja falta de informação, de indignação com o número de mortos diários em todo o mundo, em nosso país. Quantas vezes nos indignamos com a morte de 300 ou mais pessoas pela queda de um avião? Este é um exemplo típico, comum, e que até bem pouco tempo deixava a maioria de nós, no mínimo triste! Um tsunami, um terremoto, um furacão....

Brasileiros sempre afirmaram –"ah, nosso país é abençoado, não sofremos com nenhuma destas tragédias da natureza!" Agora, vemos o que? Milhares de pessoas morrendo a cada dia por um vírus, que se espalha rapidamente, mas que pode ser evitado com atitudes simples. Se tivermos a paciência de ficarmos protegidos em nossas casas, ou, caso não possamos, se simplesmente usarmos máscaras e mantivermos a distância das outras pessoas. Mas o que temos visto é exatamente o oposto. Milhares de pessoas sem máscaras nas ruas, lotando as praias, os parques. Soube que as praias da Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, estão ficando lotadas de turistas. Férias? Não, infelizmente é a demonstração de total ausência de responsabilidade e amor ao próximo e a si mesmo.

Ao que parece, a sociedade brasileira está sim se acostumando a contabilizar 800, mil mortes por dia. Aquele “novo normal” bonito, solidário, anunciado no início da pandemia em nosso país, foi trocado por este – indiferente, desumano e imediatista. Será que este será o normal no Brasil até a vacina chegar? Quantos de nós ainda terão que morrer porque alguns não puderam perder a praia ou o chope na esquina? Quantos terão que morrer enquanto você acredita neste presidente assassino e não nos milhares de pesquisadores e profissionais de saúde do mundo todo? Acho que bastaria apenas uma pessoa morrer para que você acreditasse nisto. Bastaria ela ser de sua família.

Pense nisto antes de abrir a porta de sua casa só para dar uma 'saidinha'. Será melhor do que arriscar e ter que ver para crer! Sei que tudo o que escrevi aqui não é novidade para a maioria das pessoas. Mas é minha forma de expressar a tristeza que sinto ao ter que viver neste "novo normal".
                                       
Aglomeração na área de lazer do Leblon — Foto: Jorge Soares/G1

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