"Blue eyes”





Foram quase 40 anos de convivência. No começo eu estranhava tudo:  a diferença gritante de temperamento entre as pessoas da família – uns mais reservados, outros muito comunicativos - a comida, a língua, os costumes. Mas, aos poucos, fui me adaptando e percebendo que tudo – e todos, na verdade - giravam ao redor dela. Sem nenhuma demonstração de poder ou “autoritarismo”, ela dominava naturalmente o ambiente – era a verdadeira, “Dona do Pedaço”! Não só por ser a verdadeira mãe judia, ou por ser a mulher mais talentosa para fazer bolos, tortas, pães, biscoitos, sorvetes, pastas de fígado e beringela (inesquecíveis) e todas as comidas da cozinha judaica, mas por ser a personificação legítima de seu nome, cuja origem é o Latim – Augusta! Augusta significa majestosa, nobre, glorificada.

 
Eu e Augusta, em minha casa


Acho que não só eu, mas creio que todos sabiam que naquela pequena família de cinco pessoas - que já tinha dois agregados e dois descendentes - e da qual eu começava a fazer parte, ela era o centro de tudo. Uma família formada na década de 1950, com a união de um imigrante polonês, sobrevivente do Holocausto, que com menos de duas décadas de vida havia se tornado um dos principais líderes da resistência nas florestas polonesas (Partisans https://www.arqshoah.com/images/imagens/sobreviventes-testemunhos/GRYNSZPAN_Yehiel_Chil.pdf) / e de uma auxiliar de enfermagem de Nilópolis, de lindos e inesquecíveis olhos azuis! Desta união nasceram Célia, Mário e Walter.


Walter e eu fomos colegas de faculdade – estudamos Jornalismo, na UFF na década de 1980, quando começamos a namorar. Eu morava em Niterói e ele em Copacabana, passávamos os finais de semana sempre juntos, nas casas de um ou outro, o que aumentou muito a convivência com nossas famílias. Assim, ao longo dos anos, fui me habituando com os lanches de quase todo sábado que ela preparava cuidadosamente para alguns amigos e quando só se falava em iídiche! Também me acostumei a ouvir, antes do oi, do boa tarde, ou do boa noite, quando Dona Augusta abria a porta para nós, a pergunta: “Vocês já comeram alguma coisa? Já almoçaram, já jantaram?” Cuidar, alimentar, proteger, era seu dom. Assim como era seu dom reunir as pessoas ao seu redor para contar muitas histórias e conquistar a todos. A gente já sabia, quando ela perguntava: “Você quer rir?” Aí ela tirava de suas lembranças mais antigas histórias para divertir e conquistar a todos.

Quando os netos vieram, ela costurou fraldas de algodão da antiga fábrica de tecidos Nova América, fez mantas de crochet e de fustão e passou a ser a responsável pelos bolos de cada aniversário! Ninguém admitia festa sem bolo da Vó Augusta! Anos mais tarde, quando já não conseguia mais fazer crochet, e eu demonstrei que sabia fazer um pouquinho, me presenteou com várias revistas japonesas antigas, que guardava como um tesouro, há décadas e que guardo até hoje, da mesma forma.  Também me ensinou a fazer sorvete, bolo de chocolate, pavê, burrecas ... mas eu sei que jamais serão os mesmos, por mais que eu tente.

Paula e Gabriela, as duas netas e Vó Augusta, em dia de festa. 

Enfim, estas são apenas algumas das doces lembranças que guardarei para sempre de minha “sogrita” Augusta. Ontem, 28 de novembro, completou um mês que ela nos deixou. Confesso que a “ficha” não caiu ainda. Ficamos afastadas nos últimos meses, em função da pandemia, o que me faz, muitas vezes, esquecer que, infelizmente, não a verei novamente.  Perdemos a Vó Augusta, que por tantas vezes demonstrou ser uma guerreira forte, de forma suave. Ela se foi rapidamente, sem estender o sofrimento dela, ou dos que a amavam. Partiu deixando só as boas lembranças. Acredito que quando ela se foi, de forma tão suave, sem grandes choques, pensou no que nos dizia quando ela mesma gostava de algum prato que havia feito – “gente, hoje eu me superei! Superei a mim mesma!”

Que daqui para frente seja sempre doce, como você gostava, Vó Augusta!



 

Saquarema, 29 de novembro de 2020.

 

Comentários

  1. Linda história de vida. Mariza, compartilha as receitas de D. Augusta com a gente. Interessadíssima na burreca! Grande abraço.

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    1. Katia Costa, vou selecionar as receitas, ok? Ela não era do tipo que fazia segredo, adorava ensinar, compartilhar suas delícias! Grande beijo!

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  2. Maria Helena Pelegrineti Lourenço
    Ela merece todas as homenagens! Presença alegre e foi uma uma ótima contadora de causos....Boa martenester....Boa amiga!

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