Panarício
Uma das pessoas mais sábias que encontrei na vida foi, sem dúvida, minha sogra Augusta Grynszpan. Uma mulher simples, dona de casa, sem curso superior, que enfrentou a perda da mãe e assumiu o comando da pequena família (ela, dois irmãos, além do pai), em Nilópolis, Baixada Fluminense, praticamente aos 14 anos de idade. A dor da perda e a reponsabilidade que assumiu a partir daí, no entanto, não mudaram sua essência. Talvez tenha tido momentos de revolta, mas sua capacidade para enfrentar os problemas, sempre disposta a lutar por si e pelos outros, a transformou numa pessoa acolhedora, com uma visão de mundo inteiramente oposta a tudo que o mundo até então havia lhe oferecido.
Casada com um polonês, herói de guerra - Chil Grynszpan - teve três filhos e continuou sua batalha por longos anos. Ajudava nos papéis, nos documentos da loja de móveis do marido, cuidava da casa, dos filhos, cozinhava maravilhosamente bem e, apesar de não trabalhar mais como auxiliar de enfermagem, como na mocidade, cuidava de todos os parentes que ficavam doentes. Costurava e era oficialmente a boleira de todas as festas!
Bolos deliciosos feitos por Augusta eram garantia de sucesso nas festas da família. |
Walter, a mãe e eu, no Instituto Moreira Salles, na Gávea, Rio de Janeiro |
Augusta se foi durante a pandemia, aos 90 anos. Ela não teve Covid, já estava doente há tempos – teve um AVC que aos poucos foi minando sua capacidade de lutar. Mas, por que falar dela agora? Porque ela ainda é uma presença forte na nossa família e, só esta semana, ouvi uma história que a envolve e que torço seja verdadeira.
Em 2020, para garantir que não fosse infectada, ficamos sem
vê-la durante a pandemia. Ela tinha três cuidadoras e já achávamos um risco
enorme estes contatos que não poderiam ser evitados. Senti uma dor imensa quando
ela se foi. A última vez que a vi foi em seu aniversário de 90 anos, em março daquele ano. Ela partiu em
outubro. Me doía saber que não havia me despedido dela, e que ela passou tantos
meses isolada em seu apartamento. Mas, as voltas do mundo são tantas e os
caminhos a percorrer, por mais que
planejemos, são sempre uma incógnita. Nunca sabemos quando já vivemos tudo o
que há reservado para nós e Augusta sabia bem disso. Até hoje rimos de uma
atitude dela, repetida durante algumas das inúmeras internações pelas quais passou.
Digamos assim que ela tinha ”visão de
futuro”.
Sempre ao arrumar sua malinha para deixar o hospital quando
recebia alta, recolhia todas as máscaras descartáveis que ficavam no quarto
para serem utilizadas pelos médicos e enfermeiros quando fossem examiná-la.
Quando alguém falava, “pra que levar isto para casa?!" ela prontamente respondia: “o custo destas
máscaras já foi cobrado de nós. Está pago, assim como as outras despesas
hospitalares. Um dia, não sabemos quando, elas serão úteis!” Isto aconteceu bem
antes do surgimento da Covid-19. Eu tinha várias em casa e usava quando ia
fazer artesanato. Foram as primeiras máscaras que usamos quando o vírus chegou
aqui. Claro que com o risco crescente de
contaminação, mudamos para máscaras mais apropriadas e, somado aos outros cuidados,
atravessamos a pandemia.
Mas, voltemos à história que só soube agora. Nos últimos
três meses enfrentamos novamente alguns
problemas sérios de saúde na família – minha mãe, Maria Helena, foi internada para uma pequena cirurgia. Cerca de
duas horas após ela sair de casa para o hospital, Glória, sua empregada há mais
de 20 anos e que hoje é mais do que uma irmã, teve um problema cardíaco e foi levada
às pressas para o hospital, onde ficou por mais de três semanas, fazendo o
tratamento e os exames necessários. Glória
ficaria responsável por cuidar de minha mãe durante o pós-operatório. A
cirurgia correu bem e tivemos que lançar mão de um plano B, ou seja,
contratar uma substituta pois naquele
momento Glória precisava de cuidados, não de ser cuidadora. Eu, única filha em
Niterói, também estava com uma uma artroplastia total de joelho, com implante
de próteses, agendada. Foi então que procuramos uma das cuidadoras da Augusta, Sigrid, que mora próximo a nós, para ficar com
minha mãe.
Sigrid juntou-se novamente à família. Graças a todas estes
percalços – jamais pensados ou desejados por nós, obviamente – soube que Paula, a primeira neta de Augusta,
não conseguiu deixar de visitar a avó durante a pandemia. Em segredo, Paula, à
época grávida de primeira bisneta que Augusta não teve tempo de conhecer, visitou a avó algumas vezes, levando a ela um
pouco do carinho que todos nós sentimos falta. Sem dúvida foi uma decisão onde o amor foi maior que a razão.
Uma loucura que, apesar de ‘irresponsável’,
me fez sentir um pouco aliviada da dor por não tê-la visitado. Saber que ela
teve o carinho da neta durante aquele período surreal de pandemia, me trouxe um
pouco de conforto e me fez lembrar de uma coisa que Augusta sempre dizia. ‘O
seu panarício pode ser maior que o meu. Mas só eu sei a dor que sinto!” Sei da
minha dor por não ter visitado minha sogra. Mas qual seria a dor da neta por
não visitar a avó em momentos de tamanha solidão?
Augusta e as duas netas: Paula e Gabriela |
Por isto Paula, apesar de todo o risco que envolvia sua decisão, fico feliz que a tenha tomado. Às vezes o amor ultrapassa a razão e realmente sai vitorioso. Acho que esta foi a maior herança que sua avó deixou. Espero que sua mãe, seus tios, você, seu irmão e seus primos, além da sua pequena Júlia e da Estela que está a caminho, carreguem para sempre dentro de vocês esta herança de sua avó Augusta.
Paula e Júlia no aconchego da barriga da mãe. Estela vem aí! |
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